sábado, 14 de dezembro de 2013

Distorções Cognitivas: 8 ou 80

Há algum tempo venho estudando as Distorções Cognitivas, conceito essencial da Terapia Cognitivo-Comportamental criada por Aaron Beck. Nessa abordagem, percebemos que nossos pensamentos nem sempre são interpretações fidedignas da realidade, e disso vem o termo distorção. Quem nunca interpretou os fatos de maneira distorcida? Todos nós, né? Algumas pessoas tendem a exagerar mais do que as outras, e é lógico que temos nossas distorções favoritas também. Percebi que tenho uma tendência ao Pensamento Dicotômico, fenômeno onde avaliamos as pessoas ou coisas em termos de tudo ou nada. É um mecanismo injusto e bastante opressivo, que causa sofrimento a quem o possui e aborrecimentos aos que são "julgados" impiedosamente. Mas como foi que percebi isso de maneira clara?
Bem, vou resumir minha experiência: conheço uma professora de Música que não sabe ler partituras. Isso me incomoda bastante e vivo falando mal da criatura por causa disso. Toda vez que alguém vem me falar dela, a primeira coisa que respondo é: "A Fulana?? Afff, é uma farsa, nem ler partituras ela sabe!". Daí, estudando, fui tentar descobrir o motivo de tanta fúria. Então, raciocinando, pude perceber que minha implicância e animosidade eram por motivos PESSOAIS contra a moça em questão, não quanto ao fato de ela saber ou não ler partituras. Afinal de contas, tenho um amigo que é professor de violão e não sabe ler uma linha na pauta. Juro pra vocês que nunca vi ninguém tocar tão bem ao vivo, ele é um exímio músico e eu o admiro muito. No entanto, ele não lê partituras. O Paul McCartney, por sua vez, é considerado por mim o maior compositor de todos os tempos. É meu ídolo, meu músico preferido. Sou fã número 1 do cara. Ele sabe ler partituras? Não sabe. Sendo assim, por que crucificar a rapariga que também não lê? Eu estava sendo incoerente, não?




A explicação é simples: essa moça me maltratou algumas vezes. Humilhou alguns colegas de trabalho meus, mentiu descaradamente na minha presença em diversas situações e é expert em Marketing Pessoal, coisa que me irrita muito. Tradução: não gosto da sujeita e usei uma fraqueza que ela tem para detonar a minha ira. Percebe? E o mais impressionante é que as pessoas fazem isso o tempo todo! (inclusive eu, não estou me eximindo da culpa, não! rs)
Bem, vamos examinar essas ideias. Existe um fenômeno chamado Cisão. Em linhas gerais, é definir uma coisa como totalmente boa ou totalmente má. Não existem nuances; ou uma coisa (ou pessoa) é o máximo ou é um lixo total. Algumas vezes, esse mecanismo de defesa é usado para que o indivíduo não enxergue a realidade como ela é, pois naquele momento, a verdade, para ele, pode ser muito dolorosa. Geralmente, pessoas que sofrem com isso não conseguem separar o joio do trigo, colocam tudo no mesmo saco e bloqueiam qualquer outra informação que possa coexistir ou mudar sua visão dos fatos. Os adolescentes costumam agir assim em muitas situações. Uma banda é a melhor do universo ou é um lixo, o professor Fulano é um gênio ou uma besta quadrada, eu sou linda ou sou horrorosa, não há meio-termo. A distorção cognitiva chamada Pensamento Dicotômico também atua na mesma linha, ou seja, ou as coisas são 100% boas ou 100% péssimas. Não há perdão nos julgamentos, ninguém pode errar nunca, um erro mínimo desqualifica uma pessoa ou coisa totalmente, sem chance de uma revisão. Siclano é considerado inteligente por mim, aí ele escreve uma palavra com um erro de grafia e pronto: ele é um burro, um retardado, um incapaz e NADA do que ele fez antes é considerado. Condenação total! Meu namorado sempre foi um santo comigo, mas aí ele olhou para as pernas de uma periguete na rua e BUM! Acabou, vou me separar, ele é um pervertido sem cura! Beltrana cozinha super bem, mas um dia ela salgou demais o feijão. Pronto! Acabou, Beltrana é uma mula e cozinha muito mal, como pode ter a CORAGEM de servir esse lixo de comida para os outros?
Descrevendo assim, a coisa parece cômica, mas infelizmente é o que acontece. Na verdade, pessoas que agem assim corriqueiramente são muito exigentes consigo mesmas também e tendem a ficar deprimidíssimas se cometem algum erro. Elas sonham com a perfeição e acham que o mundo ideal poderia existir (Platão que me perdoe, mas o Mundo Ideal é uma quimera inalcançável!). Viver com um chicotinho na mão punindo a si mesmo e aos outros é de uma tremenda presunção, não é mesmo? 
Às vezes fico em dúvida se essa mania de perfeição é um ranço que herdamos da religião. Hoje em dia existem religiões e seitas onde a suposta perfeição do ser humano é incentivada de maneira entusiasmada e intensa. Você tem que ser puro, bonzinho, legal, imaculado, etc etc etc. É claro que devemos sempre tentar evoluir, moral e intelectualmente, mas achar que não PODEMOS cometer nenhum erro NUNCA é um pensamento quase psicótico, me desculpe. Exigir a perfeição própria ou alheia chega a ser algo monstruoso. Quando percebo que estou agindo nesse sentido, sinto uma grande vergonha do meu comportamento. Quem sou eu pra exigir a perfeição dos outros? Eu nunca errei? Eu nunca cometi nenhum engano? Eu sou a pessoa mais inteligente do planeta? Eu sei todas as coisas, no estilo "Estou acordado e todos dormem"? Eu sou totalmente autossuficiente, não preciso de ninguém para me ensinar nada? CLARO QUE NÃO, NÉ?
Há um pequena estratégia para evitarmos esse tipo de mecanismo. O esquema seguinte pode ser utilizado em situações em que perdemos o discernimento e passamos a ser escravos do Pensamento Dicotômico. Devemos, simplesmente, reconhecer nosso pensamento distorcido e tentar atualizá-lo, usando a razão e a coerência. Observe os exemplos:

Exemplo 1:
PENSAMENTO ANTIGO: Não gosto da Fulana porque ela não sabe ler partitura.
PENSAMENTO ATUALIZADO: Não gosto da Fulana porque ela me maltratou, mentiu e tem uma conduta que não me agrada. Posso até falar mal dela, mas usando argumentos justos, afinal, já sou adulta e o Jardim da Infância já acabou FAZ TEMPO!

Exemplo 2:
PENSAMENTO ANTIGO: Escrevi uma palavra sem acento na rede social e todos viram. Sou uma burra, todos os meus diplomas não valem nada e mereço levar uma surra de chicote de rabo de tatu por ter cometido uma gafe tão monstruosa.
PENSAMENTO ATUALIZADO: Sou humana e passível de erros. Não sei todas as coisas. Todo mundo erra e eu não sou o centro do mundo. Claro que alguém vai me julgar e me condenar, mas que se dane! Quem paga a fatura do meu cartão de crédito, afinal?

Exemplo 3:
PENSAMENTO ANTIGO: O Professor Fulano errou um cálculo na lousa. Mas que anta, como ele pode dar aulas? Pelo amor de Deus, por que não demitem esse imbecil? O que ele pode me ensinar se errou um cálculo? Afff, que HORROR!
PENSAMENTO ATUALIZADO: A gente aprende com TODAS as pessoas. Se Fulano errou um cálculo, significa que ele é gente, assim como eu. Nós dois fazemos coco, xixi e já vomitamos muitas vezes na vida. Eu nunca cometi nenhum erro? Por que me acho tão perfeito? O que quero esconder de mim mesmo?

Exemplo 4:
PENSAMENTO ANTIGO: O Jon Bon Jovi já não tem mais a mesma voz de antes. Ele não consegue dar mais aqueles agudos no refrão de "Livin' on a Prayer". LIXO de cantor!
PENSAMENTO ATUALIZADO: Todos envelhecem e não atingir uma nota não desqualifica todo o trabalho que o cara já fez na vida. Eu sou cantora? Canto melhor do que ele? Consigo fazer aquele agudo? É natural que um cara envelheça e perca um pouco da potência da voz. Se eu fosse um cantor, isso também aconteceria comigo.

Enfim, acho que deu pra entender qual é a ideia. Ninguém sabe tudo e não devemos desprezar as pessoas porque elas não preenchem as NOSSAS expectativas do que julgamos ser o adequado. Quando você estiver distorcendo a realidade, tente examinar as raízes mais profundas do seu descontentamento. Muitas vezes, o problema está mais na gente do que no outro!



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