sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A Mulher das Bofetadas

Chegou atrasado no emprego. Tirava o paletó, quando o Carvalhinho veio avisar:
— Olha, telefonaram pra ti.

— Homem ou mulher?

— Mulher.
— Deixou recado?
— Não. Disse que telefonava depois. Arregaçando as mangas, bufou:
— ok! ok!
Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns pa­péis, quando o telefone bate novamente. O contínuo, que aten­deu, berrou:
— Aristides!
Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a princípio, não identificou. A pessoa perguntava: — “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase gros­seiro:
— Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.
Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:
— Sou Dorinha.
Aristides quase cai para trás, duro.
Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-de-cotovelo confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam brigado. E quan­do Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses, Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça. Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um pileque dantesco. E, súbi­to, ela telefona, a inesquecível, a insubstituível Dorinha! Ao im­pacto da surpresa, gagueja:
— Ah, como vai você?
— Bem. E você?
— Navegando.
E, então, Dorinha diz-lhe:
— Preciso muito falar contigo.
— Comigo? E quando?
— Já.
— Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura so­frida, pergunta: — Tu sabes que mandas em mim, não sabes?
Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua da Carioca.
Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais fresca do que nunca. Diante da mulher que nun­ca deixara de amar, não se conteve. Com o coração disparan­do, começou:
— Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.
Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:
— Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal de mim.
O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:
— Você acha que eu posso fazer má idéia de ti? Oh, Do­rinha!
Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:
— Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha confiança e… Está compreendendo?
Numa confusão total, balbuciou:
— Mais ou menos.
E ela:
— Para falar português claro: — estou oferecendo a minha tarde. Leva-me!
Deslumbrado, exclama:
— Oh, Dorinha!
Ele pagou, trêmulo, a despesa.
Saem e, lá fora, Dorinha observa:
— Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?
Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um apartamento em Botafogo. Cheio de escrúpulos, bai­xa a voz: — “Eu tenho um lugar, assim, assim, discretíssimo”. Dorinha interrompe: — “Ótimo!”. Tomam um táxi, que ia pas­sando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:
— Você, naturalmente, está espantado e querendo uma ex­plicação.
Protesta, veemente:
— Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!
Quando entraram, uns quinze minutos depois, no aparta­mento, Aristides não sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dori­nha toma a iniciativa:
— Você não me beija?
Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam para sempre. Em seguida, ele a carre­ga no colo, como uma noiva de fita de cinema. Uma hora e pou­co depois, já a noite entrara no apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura. Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:
— Eu não sabia que gostavas tanto de mim!
Dorinha vira-se, com divertida surpresa:
— Mas eu não gosto de ti.
Atônito, pergunta:
— E isso que aconteceu entre nós? Não conta?
A pequena está de pé:
— Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido, ontem, discutiu comigo e me deu uma bofeta­da. Estou aqui por causa da bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.
Ele insiste, desesperado:
— Quer dizer que não vamos continuar?
Responde:
— Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe: — eu telefono pra ti.
Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, dei­xou-a partir.
Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma criança.
Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da Terra. Dizia de si para si: — “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atração por qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o telefone: — era ela. Perguntava, alegremente:
— Vamos lá, outra vez?
Foram. E, no apartamento, ela suspira:
— Imagina, deu-me outra bofetada.
Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela ex­clama:
— Os homens são muito burros!
— Por quê?
E Dorinha:
— Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?

(Nelson Rodrigues)


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