sábado, 8 de agosto de 2015

Destino, um confortável desejo.

Mário Quintana, poeta modernista que, por pouco, não atravessou vivo todo o século passado, é autor de deliciosa obra de leitura do cotidiano (premiada em seu conjunto pela Academia Brasileira de Letras, na qual tentou por três vezes ingressar e foi derrotado). O gaúcho sempre foi um frasista militante de alta qualidade e, durante anos, publicou muitas dessas frases em jornais com o título de "Caderno H" (agrupadas e publicadas em coletânea no início dos anos 1970). Uma delas toca num dos temas mais recorrentes dos nossos momentos: a ideia de destino. Disse ele que "o destino é o acaso atacado de mania de grandeza".
Destino ou acaso? Coincidência ou fatalidade? Determinismo ou liberdade?
Há uma angústia presente na necessidade de fazer escolhas e, mais ainda, na de ter de aceitar o resultado daquilo que se escolheu. Às vezes, essa angústia se transforma em desgosto, sofreguidão, atribulação, sufoco, avidez, desassossego, inquietação. A melhor forma de justificar ocorrências, legitimar frustrações ou desculpar algumas emoções desvairadas é naturalizar a origem de tudo, isto é, colocar as causas dos fatos e nos comportamentos em um patamar fora da intervenção humana, como o destino ou a natureza. Assemelha-se um pouco à síndrome de Gabriela, uma apologia do "eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim..."
O médico e escritor espanhol Gregorio Marañón, além de biografias e ensaios científicos, produziu fundamentais estudos em endocrinologia, especialmente sobre uma das vedetes de nosso tempo: a adrenalina. Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, descreveu o papel das descargas e do nível desse hormônio para explicar os processos da emoção. Porém sua sólida formação científica não o impediu de afirmar que "a pobre liberdade que os homens nos dão ou nos tiram quase nada representa ao lado da cadeia do destino herdado, que nasce enroscada em nossa alma e a vida mal pode afrouxar".
Essa apaziguadora interpretação da existência aparece inclusive em uma das poesias do filósofo Nietzsche, na qual faz menção a Epicteto, fundador do estoicismo, na Antiguidade, e criador da máxima "Suporta e abstém-te". O filósofo alemão diz: "Destino, sigo-te! E, mesmo que não o quisesse, deveria fazê-lo, ainda que gemendo".
É muito confortável proclamar a presença constante do destino; quando existe a convicção de que tudo "já está escrito", evita-se a turbulência mental que advém quando é preciso decidir, assumir ou, o que também é fulcral, enfrentar os responsáveis. É preciso prestar atenção ao que disse o Nobel de Literatura de 1915, Romain Roland: "Os homens inventaram o destino a fim de lhe atribuir as desordens do universo, que eles têm por dever governar". Talvez aí esteja a raiz de muitos dos tormentos espirituais, das aflições de consciência e das agonias pessoais: a perturbação por ter de assumir os riscos e as consequências das opções que podem ser feitas por aqueles que superaram a indigência das condições materiais de existência e, portanto, atingiram a capacidade de ir além da mera sobrevivência física cotidiana. Esses, assim como nós, não são privados de arbítrio e, portanto, devem responder socialmente pelos encargos trazidos pela liberdade. A atitude expectante, aquela que fica no aguardo do que vier, supondo a representação involuntária de um enredo previamente elaborado por forças alheias ao nosso mundo, representa uma postura negligente e até irresponsável.
Como bradou o suíço Denis de Rougemont (um dos fundadores do personalismo na filosofia do século 20 ), "a decadência de uma sociedade começa quando o homem pergunta a si próprio: "Que irá acontecer?" em vez de inquirir "Que posso eu fazer?'".
(Mário Sérgio Cortella)


Nenhum comentário: