sábado, 24 de novembro de 2012

Casal de Três

O ENCONTRO
O sogro era um santo e patusco cidadão. Assim que o viu arremessou-se, de braços abertos: 
- Como vai essa figura? Bem? 
Filadelfo abraçou e deixou-se abraçar. E rosnou, lúgubre: 
- Essa figura vai mal. 
Espanto do sogro: 
- Por que, carambolas? - E insistia: - Vai mal, por quê? 
Caminhando pela calçada, lado a lado com o velho bom e barrigudo, Filadelfo foi enumerando as suas provações, só comparáveis às de Job: 
- É o gênio de sua filha. Sou desacatado, a três por dois Qualquer dia apanho na cara! 
Dr. Magarão assentiu, grave e consternado: 
- Compreendo, compreendo. - Suspira, admitindo: - Puxou à mãe. Gênio igualzinho. A mãe também é assim! 
Súbito Filadelfo estaca. Põe a mão no ombro do outro; interpela-o: 
- Quero que o senhor me responda o seguinte: isso está certo? É direito? 
O velho engasga: 
- Bem. Direito, propriamente, não sei. - Medita e pergunta: - Você quer uma opinião sincera? Batata? Quer? 
- Quero. 
E o sogro: 
- Então, vamos tomar qualquer coisa ali adiante. Vou te dizer umas coisas que todo homem casado devia saber. 


TEORIA

Entram num pequeno bar, ocupam uma mesa discreta. Enquanto o garçom vai e vem, com uma cerveja e dois copos, dr.Magarão comenta: 

- Você sabe que eu sou casado, claro. Muito bem. E, além da minha experiência, vejo a dos outros. Descobri que toda mulher honesta é assim mesmo. 
Espanto de Filadelfo: 
- Assim como? 
O gordo continua: 
- Como minha filha. Sem tirar, nem pôr. Você, meu caro, desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e neurastênica. 
Filadelfo recua na cadeira: 
- Tem dó! Essa não! - E repetia, de olhos esbugalhados, lambendo a espuma da cerveja: - Essa, não! 
Mas o sogro insistiu. Pergunta: 
- Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi uma que traia o marido com a metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo! - Espalmou a mão no próprio peito, numa feroz satisfação retrospectiva: - Também comigo! E tratava o marido assim, na palma da mão! 
Uma hora depois, saiam os dois do pequeno bar. Dr. Magarão, com sua barriga de ópera-bufa e bêbado, trovejava: 
- Você deve se dar por muito satisfeito! Deve lamber os dedos! Dar graças a Deus! 
O genro, com as pernas bambas, o olho injetado, resmunga: 
- Vou tratar disso! 



O DESGRAÇADO 

Não mentira ao sogro. Sua vida conjugal era, de fato, de uma melancolia tremenda. Descontado o período da lua-de-mel, que ele estimava em oito dias, nunca mais fora bem tratado. Sofria as mais graves desconsiderações, inclusive na frente de visitas. E, certa vez, durante um jantar com outras pessoas, ela o fulmina, com a seguinte observação, em voz altíssima: 

- Vê se pára de mastigar a dentadura, sim? 
Houve um constrangimento universal. O pobre do marido, assim desfeiteado, só faltou atirar-se pela janela mais próxima. Após três anos de experiência matrimonial, ele já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não compreendia que Jupira, amabilíssima com todo mundo, fizesse uma exceção para ele, que era, justamente, o marido. Depois de ter deixado o sogro, voltou para casa desesperado. Chega, abre a porta, sobe a escada e quando entra no quarto recebe a intimação: 
- Não acende a luz! 
Obedeceu. Tirou a roupa no escuro e, depois, andou caçando o pijama, como um cego. E quando, afinal, pôde deitar-se, fez uma reflexão melancólica: há dez meses ou mesmo um ano que o beijo na boca fora suprimido entre os dois. O máximo que ele, intimidado, se permitia, era roçar com os lábios a face da esposa. Se queria ser carinhoso demais, ela o desiludia: "Na boca não! Não quero!". Outra coisa que o amargurava era o seguinte: a negligência da mulher no lar. Não se enfeitava, não se perfumava. Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembrando-se da teoria do sogro: - "Será que a esposa honesta também precisa cheirar mal?". 



MUDANÇA 

Um mês depois, ele chega em casa, do trabalho, e acontece uma coisa sem precedentes: a mulher, pintada, perfumada, se atira nos seus braços. Foi uma surpresa tão violenta que Filadelfo perde o equilíbrio e quase cai. Em seguida, ela aperta entre as mãos o seu rosto e o beija na boca, num arrebatamento de namorada, de noiva ou de esposa em lua-de-mel. Ele apanha o jornal, que deixara cair. Maravilhado, pergunta: 

- Mas que é isso? Que foi que houve? 
Jupira responde com outra pergunta: 
- Não gostou? 
Ele senta confuso 
- Gostar, gostei, mas... - Ri: - Você não é assim, você não me beija nunca. 
Jupira tem um gesto de uma petulância que o delícia: vem sentar-se no seu colo, encosta o rosto no dele. Filadelfo é acariciado. Acaba perguntando: 
- Explica este mistério. Aconteceu alguma coisa. Aconteceu? 
Ela suspira: 
- Mudei, ora! 



SOFRIMENTO 

A princípio, Filadelfo conjeturou: "É hoje só". No dia seguinte, porém, houve a mesma coisa. Ele coçava a cabeça: "Aqui há dente de coelho!". Coincidiu que, por essa ocasião, os seus sogros aparecessem para jantar. Dr.Magarão, enquanto a mulher conversava com a filha, levou o genro para a janela: "Como é? Como vai o negócio aqui?" 

Filadelfo exclama: 
- Estou besta! Estou com a minha cara no chão! 
O velho empina a barriga de ópera-bufa: 
- Por quê? 
E o genro: 
- Tivemos aquela conversa. Pois bem. Jupira mudou. Está uma seda; e me trata que só o senhor vendo! 
Ao lado, mascando o charuto apagado, o velho balança a cabeça: 
- Ótimo! 
- O negócio está tão bom, tão gostoso, que eu já começo a desconfiar! 
O sogro põe-lhe as duas mãos nos ombros: 
- Queres um conselho? De mãe pra filho? Não desconfia de nada, rapaz. Te custa ser cego? Olha! O marido não deve ser o último a saber, compreendeu? O marido não deve saber nunca! 



LUA DE MEL 

Seguindo a sugestão do sogro, de não quis investigar as causas da mudança da esposa. Tratou de extrair o máximo possível da situação, tanto mais que passara a viver num regime de lua-de-mel. Dias depois, porém, recebe uma minuciosíssima carta anônima, com dados, nomes, endereços, duma imensa verossimilhança. O missivista desconhecido começava assim: "Tua mulher e o Cunha...". O Cunha era, talvez, o seu maior amigo e jantava três vezes por semana ou, no mínimo, duas, com o casal. A carta anônima dava até o número do edifício e o andar do apartamento em Copacabana onde os amantes se encontravam. Filadelfo lê aquilo, relê e rasga, em mil pedacinhos, o papel indecoroso. Pensa no Cunha, que é solteiro, simpático, quase bonito e tem bons dentes. Uma conclusão se impõe: sua felicidade conjugal, na última fase, é feita à base do Cunha. Filadelfo continuou sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Jupira revivia, agora, os momentos áureos da lua-de-mel. Certa vez jantavam os três, quando cai o guardanapo de Filadelfo. Este abaixa-se para apanhar e vê, insofismavelmente, debaixo da mesa, os pés da mulher e do Cunha, numa fusão nupcial, uns por cima dos outros. Passa-se o tempo e Filadelfo recebe a noticia: o Cunha ficara noivo! Vai para casa, preocupadíssimo. E, lá, encontra a mulher de bruços, na cama, aos soluços. Num desespero obtuso, ela diz e repete: 

- Eu quero morrer! Eu quero morrer! 
Filadelfo olhou só: não fez nenhum comentário. Vai numa gaveta, apanha o revólver e sai à procura do outro. Quando o encontra, cria o dilema: 
- Ou você desmancha esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro! 
No dia seguinte, o apavorado Cunha escreve uma carta ao futuro sogro, dando o dito por não dito. À noite, comparecia, escabreado, para jantar com o casal. E, então, à mesa, Filadelfo vira-se para o amigo e decide: 
- Você, agora, vem jantar aqui todas as noites! 
Quando o Cunha saiu, passada a meia-noite, Jupira atira-se nos braços do marido: 
- Você é um amor!
(Nelson Rodrigues)




sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Banho de Noiva

Vinte e quatro horas antes do casamento, Detinha suspira:
- Meu filho, posso te fazer uma pergunta?
Peçanha (Antônio Peçanha), que estava limando as unhas com um pau de fósforo, boceja: "Mete lá". E ela:
- Quantos banhos tu tomas?
Admirou-se:
- Por quê? 
E ela
- Responde. Quantos banhos tu tomas por dia?
- Um ora essa!
- Só?
Peçanha caiu das nuvens:
- Tu achas pouco?
Admitiu, lânguida:
- Acho.


O BANHO


Peçanha vira-se, entre surpreso e divertido: - "Estás falando sério? " Insiste: - "Por que não?". O rapaz ergue-se: -"Mas que piada infeliz!". Detinha continuou:

- Sei que, de uma maneira geral, todo mundo toma um banho só. Mas eu não vou atrás de conversa, não. Tomo dois, no mínimo. Quando faz calor, três. Até quatro. Não tolero cheiro de suor nem em mim, nem nos outros. Palavra de honra!
O noivo bufa:
- Quatro banhos?
Confirmou:
- Sim senhor: - quatro. Num clima como o nosso, um banho é pouco. Não dá.
Ele explodiu:
- Ora, Detinha! Tira o cavalo da chuva! Tu achas, talvez, que eu vou passar o dia todo, as vinte e quatro horas do dia, debaixo do chuveiro? Achas que eu não tenho mais nada que fazer senão tomar banho? Gozado!
A pequena ia replicar, quando foi chamada na cozinha. Deixa o noivo na varanda e atende. Peçanha, ainda impressionado, pragueja, interiormente
- Ora pipocas!



O NOIVADO

A casa estava cheia de gente, sobretudo de mulheres. Até uma tia do Realengo, que a família supunha morta e enterrada, reapareceu, sensacionalmente. Velha solteirona, meio estrábica, viera farejar, na sobrinha, a felicidade que a vida lhe negara. Pois bem. Detinha entra e, com pouco mais, volta atarantada: -"Meu filho, vai, ouviu, vai que eu tenho o que fazer, sim?". Beijou-a, de leve, numa das faces, e grita, para dentro, numa saudação coletiva:

- Bye-bye!
Veio a resposta, num alarido de mulheres:

- Bye-bye!
Partiu Peçanha, com uma sensação, uma vaga e desconfortável sensação de escorraçado.


IDEIA FIXA


A caminho do poste de ônibus, Peçanha veio pensando no que ele próprio chamava o "palpite indigesto" de Detinha. Julgara perceber, nas palavras da noiva, uma insinuação extremamente desagradável. De si para si, indagou: - "será que eu cheiro mal?". E suspira: - "Ora veja!". Horas depois, no quarto, não conseguia dormir, aflitíssimo. Só às quatro da manhã é que, finalmente, fechou os olhos e todas as suas incertezas se apaziguaram num sono realmente profundo. Acordou às sete horas, com a alegre exclamação. - "É hoje! Hoje!". Meteu-se debaixo do chuveiro, tomou um banho minucioso, um banho implacável, um banho de casamento. Antes, escovara os dentes com energia, quase com desespero; e só parou quando sentiu as gengivas feridas. Em seguida, pôs perfume, talco, o diabo. Desceu, na euforia do próprio asseio Veio perguntar:

- Que tal o meu hálito, mamãe? Vê que tal?
Soprou-lhe no rosto. A mãe, que era uma emotiva, uma sentimental, disse, já com vontade de chorar:
- Ótimo. E Deus te abençoe, meu filho, Deus te abençoe!
Pouco depois, ele estava tomando uma gemada reconstituinte. A emoção nupcial em vez de lhe diminuir, aumentava o apetite. Antes de ligar o telefone para a noiva, indaga da mãe:
- "Eu quero que a senhora me responda, com sinceridade - alguma vez a senhora observou que eu cheirasse mal? Fala a verdade mamãe!". Ela foi taxativa: - "Nunca!". Mais animado, Peçanha discou para a pequena. Depois do bom-dia recíproco, Detinha quer saber:
- Já tomaste banho?
Protesta no telefone:
- Será o Benedito? Isso é idéia fixa ou que diabo é? Que graça!
Ela pergunta: - "Você se ofendeu? Tipo da pergunta natural!". Passou. Só ao meio-dia houve a cerimônia civil. Eram. enfim, marido e mulher para todos os efeitos. Quando saíram, com o acompanhamento das duas famílias e de amigos mais íntimos, Detinha aproveita a primeira oportunidade para soprar-lhe ao ouvido:
- Vai para casa tomar banho, ouviu? - insiste, baixo, quase sem mover os lábios - Quero te ver cheiroso, bem cheiroso!
- Sossega, leoa!



APAIXONADO

Peçanha correu de táxi para casa, a fim de se preparar para o casamento religioso. Levava, porém, uma surda irritação. Era provável que a idéia de um novo banho lhe ocorresse, espontaneamente. Mas doía-lhe que a noiva quisesse ditar-lhe normas de higiene. Estava tão descontente que fez o seguinte: - sacrificou, por uma espécie de pirraça, o banho proposto. Limitou-se a esfregar álcool debaixo do braço e a repassar uma nova mão de talco. Todavia, quando, horas depois, toma o automóvel com destino à igreja, ocorreu-lhe uma reflexão incômoda: - "Será que eu estou cheirando a suor?". Felizmente, não tardou que chegasse à igreja. E, então; tudo se diluiu no esplendor da cerimônia. A noiva, num vestido maravilhoso, era, sem dúvida, uma doce imagem inesquecível. O que ocorreu, depois, não pode ser descrito. Quando Peçanha deu acordo de si, estava no feérico automóvel, ao lado da noiva. sôfrego. Baixa a voz para Detinha:

- Meu anjo, vê se capricha na pressa; ouviu? - Repetia, transpirando de carinho e impaciência: - Vê se caímos fora cedo!
Detinha não respondeu, como se estivesse imersa num sonho definitivo. Até chegar à casa dos pais, só abriu a boca uma vez, uma única vez, para perguntar: - "Tomaste dois banhos hoje?". Peçanha toma um susto:
- Mas que idéia você faz de mim? Espera lá!



PRIMEIRA NOITE

Na casa dos sogros, Peçanha, discretamente, instiga a noiva: - "Chispa! Chispa!". sua impaciência de amoroso já estava dando na vista e suscitando alegres comentários. Para evitar as despedidas demoradas, saíram pelos fundos; Detinha experimentou uma deliciosa sensação de fuga, de rapto. O automóvel que os levou para o hotel de montanha fez toda a viagem numa velocidade macia, quase imperceptível. Rapidamente chegam lá, sobem, agarradíssimos, para o apartamento já reservado. Entram, e Peçanha, ofegante, com o olho rútilo, torce a chave. Quer agarrá-la, mas ela se desprende, com inesperada agilidade. Ele pergunta: - "Que é isso?" Ela responde - "Primeiro, vou tomar banho. Faço questão absoluta". Ele pediu, rogou, suplicou, a morrer de paixão. Encontrou-a, porém, irredutível. Disse a última palavra: - "Ou você não percebe que este é um momento em que a mulher precisa estar cem por cento?". Teve que capitular. Com um sentimento de frustração, deixou o quarto. Ficou, cá fora, no corredor, fumando um cigarro atrás do outro. Enquanto isso a mulher tomava o seu banho demorado, um banho de Cleópatra. Após uns quarenta e cinco minutos de espera, ela entreabriu a porta: - "Meu bem?". Arremessou-se, num desvario. Novamente, ela o detém: - "Calma, calma!".

Recuou atônito:
- Calma por quê?
E ela doce mas irredutível:
- Já tomei o meu banho. Agora é tua vez.
Quis reagir:
- Ora, Detinha! Que banho? Parece criança! Vem cá, anda vem cá!
Quer segurá-la. Novamente, ela se desprende. Some do seu rosto a expressão de doçura. Trinca os dentes: - "Das duas uma - ou você toma banho ou não toca em mim!". Peçanha abriu os braços:
- Voce está insinuando o quê? Que eu não tomei banho? Tem nojo de mim? Fala! Tem nojo?
Há, entre os dois, uma mesinha, que a protege. Silêncio. Peçanha insiste, já com os olhos marejados:
- Não me custaria tomar um banho, claro. Mas você não vê que é humilhante para mim? Se eu tomar banho, fica parecendo o quê? Que eu sou um sujo, um sebento, um sujeito que cheira mal. Ouviu, meu anjo? - Baixa a voz: - Há certos papéis que um marido não pode fazer! - Pausa e pede: - Agora, um beijo!
Ela recua:
- Não! Primeiro, o banho! Ou banho ou nada feito!
Diante da mulher, que faz da mesinha uma pequena barricada, o marido implora ainda. E Detinha, nada. Por um momento, o pobre-diabo olha na direção do banheiro, disposto talvez a transigir. Mas dá nele, súbito, uma dessas fúrias terríveis. Persegue-a dentro do quarto; chega a agarrá-la. Mas ela se desvencilha outra vez, abre a porta e foge, pelo corredor, gritando. Hóspedes e funcionários do hotel acodem. Então, soluçando, ela aponta para o marido:
- É um porco! Casei-me com um porco! Tirem esse porco daqui!
(Nelson Rodrigues)